Espiritualidade

Partilha do Pão

 por Ramlit Navarro



“Ele tomou o pão, deu graças, o partiu e entregou a seus discípulos...” (1 Cor. 11,23-24)

Estas palavras de Jesus, conforme os escritos de São Paulo, nos lembram das primeiras comunidades cristãs que viam nas palavras e atos de Jesus inspiração e força na sua caminhada.  As comunidades se reuniam contando e recontando a vida de Jesus a partir dos relatos e partilhavam o pão seguindo o gesto de Jesus durante toda a sua vida em missão.  A partilha do pão antes e depois da morte de Jesus  marcava as comunidades seguidoras de Jesus pois nela ele pediu que fosse feita em memória dele – memória daquele que amou até o fim, daquele que amou sem fim – memória a ser trazida no presente.  

A partilha do pão marcou as primeiras comunidades cristãs porque ela não somente as fazia lembrar de Jesus como ela também mostrava quem era Jesus.  Seguindo o seu exemplo, a partilha do pão era uma celebração de abertura para o outro, acolhida do diferente, perdão, solidariedade e fraternidade.  (Só bem depois que ela começou a ser usada como instrumento de dominação, exclusão, discriminação, demonstração de poder e riqueza, e outros motivos sem nenhuma relação com partilha).

Esta reflexão é nada mais do que uma tentativa de fazer memória das palavras e dos gestos de Jesus e trazê-los para  dar inspiração e força no presente.  Palavras do passado trazidas para o presente se tornam um presente.  Um presente para quem está em busca de sinais de gratuidade e graça no presente; um presente para um mundo em constante mudança; um presente na busca incessante do sentido da vida e; um presente para quem leva à sério sua vivência da fé cristã.

Como um convite e uma proposta ao mesmo tempo, nós vamos refletir sobre as palavras e os gestos de Jesus a partir do 1 Cor. 11,23-24.  Focalizamos nas palavras TOMAR, DAR GRAÇAS (ou ABENÇOAR), PARTIR e DAR (ou ENTREGAR).  Estas palavras podem nos levar a compreender um pouco mais a vida e a missão de Jesus.


I.  TOMAR:  Jesus tomou o pão


A palavra (verbo) `tomar´ tem muitos significados.  Primeiro, `tomar´ significa ´pegar em´, `segurar´, `carregar´, `aceitar´, `incluir´, `receber´.  Por exemplo, “tomar a minha mão”, “tomar algo (remédio, água, banho etc.)”.  Segundo, `tomar´é fazer de propósito, arriscar, enfrentar.  Exemplo, “tomar decisão”, “tomar atitude”, “tomar medidas”, “tomar providências”, “tomar rumo” etc.  Terceiro, `tomar´ é entregar, confiar, abandonar-se para o outro.  Alguém que diz “tomar conta de mim” está entregando, confiando e abandonando-se para outra pessoa.

Quando Jesus tomou o pão, ele tomou seu próprio corpo, sua própria vida.  Ele tomou tudo que é e tem.   Ele sabia que a vida não era dele mas de Deus, um presente de Deus para ele.  E Jesus aceitou, recebeu, segurou, cuidou da vida.  Ele tomou o pão – ele tomou a vida.  Ele assumiu sua vida em Deus.  Por isso, ele aceitou sua identidade e toda a sua história tomando sua condição de filho de carpinteiro proveniente de Nazaré, de uma região marginalizada da Galileia explorada pelos poderes religiosos e políticos.  Ao tomar o pão, Jesus proclamou: “Esta é a minha vida, dádiva de Deus!  Eu a vivo plenamente até o fim!”  

* Tomar o pão significa aceitar toda a minha identidade e minha história.  Isso requer aceitação plena de todos os aspectos da minha vida, i.e. minhas condições físicas/psicológicas/espirituais, meus talentos, sonhos, conquistas etc. e também as minhas limitações, falhas e carências.  Quem não aceita a si mesmo nunca será feliz.  O gesto de Jesus mostra que o sabor do pão tomado se expressa na intensidade de viver com todos os altos e baixos, os consolos e as decepções, as correrias e as monotonias  da vida.*

Jesus tomou o pão porque ele abraçou a vida com todos os seus desafios.   Ele passava momentos de solidão tomando decisões importantes à luz da sua fé em Deus.  Com certeza, ele tinha dúvidas diante da incerteza e medo perante possível sofrimento e rejeição.  Mas após ouvir a voz de Deus, ele tomou atitude/rumo.  Ao tomar decisões difíceis, ele encarou um futuro ameaçador e arriscou sua vida assumindo todas as conseqüências de suas decisões.  Jesus sofria rejeição por causa das atitudes que ele tomou.  Nem a sua família e parentes entendiam o que passava na cabeça dele.  Pior quando ele se exponha diante das autoridades religiosas.  Ele era visto como alguém que tomava um rumo da vida fora das leis e tradições.  Era alguém que tomava o caminho dos pecadores, bêbados, blásfemos, impuros, endemoniados, mulheres desprezadas  etc. pois se encontrava exatamente no meio deles.   Ele era visto como alguém que tomou um caminho errado, um caminho que não era de Deus.

*Tomar decisões é algo que faz parte da vida de uma pessoa matura. Obviamente, pessoas imaturas são incapazes de tomar decisões para elas mesmas.  Elas deixam outras pessoas ou situações tomarem decisões por elas.  Entretanto, a capacidade de tomar decisão nem sempre depende do nível da maturidade da pessoa.  Há momentos especiais de vida que exigem  tomar decisões e atitudes.   Estes momentos podem mudar o rumo da vida radicalmente.  E como o futuro é um mistério, ele pode apresentar oportunidades ou ameaças, vitórias ou derrotas.  Quem arrisca tende a colocar-se numa situação de `tudo´ ou `nada´.  Por isso, tomar decisões e guinadas radicais são coisas não somente das pessoas maturas mas também corajosas.  `Tomar pão´ neste sentido é preparar-se para enfrentar o desconhecido.  Além disso, é também colocar-se no desconforto, incerteza e até dor e rejeição.   Afinal, é coisa de quem tem coragem.  E quem tem coragem pode fracassar, mas quem não a tem já está fracassado.  Como dizem, é melhor fracassar por ter arriscado do que não arriscar por ter medo.*

Jesus tomava o pão assim como qualquer judeu no seu tempo, assim como qualquer pessoa hoje.  Mas o gesto de tomar pão para ele é também um ato de entrega de sua vida.  Quando ele toma o pão, ele abandona-se em Deus pois ele confia toda a sua vida em Deus.  O Deus da vida toma conta dele, o pão da vida.  Nos últimos momentos de Jesus, só restou seu abandono e confiança em Deus.  O mundo o condenou como um fracassado na cruz, seus amigos o abandonaram e sua missão tinha encerrado.  Não sobrou nada além da sua vida entregue a Deus – ao seu Pai cuja ausência ele sentia.  Pela experiência, parece que o melhor momento para eu abandonar-me em Deus é o momento em que me sinto abandonado até por Ele.

*A experiência de Jesus mostra que não basta tomar a vida assumindo tudo o que ela tem.  Também, por mais heróica que pareça, tomar decisões e rumos radicais pode causar tamanha aflição e enfraquecimento das defesas psicológicas e sociais.  É preciso ter muita força e recursos para manter-se firme e coerente especialmente nos momentos de fraqueza, solidão e sofrimento.  Por isso, tomar o pão é confiar e abandonar-se em Deus.  A vida podia ter virado uma bagunça ou o rumo podia ter errado de horizonte mas sempre tenho um Deus misericordioso em quem reclino meu espírito.  Ele é o meu pastor e nada me faltará. A fonte de força e garantia de firmeza é Deus. *


Para Reflexão:


Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano, ele treme de medo.
Olha para trás, para toda a jornada: os cumes, as montanhas,
o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados,
e vê a sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais
é do que desaparecer para sempre.
Mas não há outra maneira.
O rio não pode voltar.
Ninguém pode voltar.
Voltar é impossível na existência.
Você pode apenas ir em frente.
O rio precisa se arriscar e entrar no oceano.
E somente quando ele entra no oceano
é que o medo desaparece,
porque apenas então o rio saberá
que não se trata de desaparecer no oceano.
Mas tornar-se oceano.
Por um lado é desaparecimento
e por outro lado é renascimento.
Assim somos nós.
Só podemos ir em frente e arriscar.



II.  DAR GRAÇAS:  Jesus deu graças
A expressão `dar graças´ é sinônima de `agradecer.´ Dar ou mostrar gratidão sempre por algum motivo.  E quem dá graças ou agradece somente terá boas palavras a dizer.  Por isso, agradecer também é bendizer (benzer), isto é, dizer bem com relação a algo ou alguém.  Momento de gratidão é momento de bênção, e vice versa.  Uma pessoa bendita deve ser uma pessoa grata pois uma pessoa grata é certamente bendita.  Ninguém agradece mal dizendo ou falando mal.  A maldição, oposta à bênção, não combina com gratidão.  Portanto, a pessoa verdadeiramente grata e bendita só solta palavras boas.  Não é por acaso que um resmungão atrai e emite energia negativa – ele demonstra ingratidão e acolhe maldição na vida.

Ao tomar o pão, naquela ceia derradeira, Jesus deu graças a Deus (e com certeza agradeceu aos discípulos/as também).  Sua demonstração de gratidão ocorreu no momento quando ele não teria motivos óbvios para agradecer.  Ele deu graças no momento da desgraça, bênção no meio da maldição.  Diante do iminente sofrimento e morte, ele  teve motivos para proferir palavras boas e bonitas.  Ele bendisse em vez de maldizer, louvou em vez de reclamar.

O ser humano normal costuma agradecer pelo que consegue ter, fazer e ouvir de bom sobre si.  Por exemplo, nós costumamos agradecer pelo que temos:  vida, saúde, família, emprego, casa, dinheiro, projetos etc.  e tudo de bom que vem com eles.  Também, nós agradecemos pelo que conseguimos fazer.  Sim, somos capazes de fazer muitas coisas, e muitas coisas boas.  E por causa das coisas que conseguimos ter e fazer, nós sentimos bem ouvindo palavras de elogio, apreço e gratidão provenientes de várias fontes.  Estas palavras coroam nossa identidade e habilidade.  São confirmações de quem somos e o que fazemos.   E são motivos de imensa gratidão.  Aí de quem não sabe agradecer apesar destes motivos.  Uma ingratidão perante tantas bênçãos seria difícil de explicar.

Voltamos a Jesus.  Aflito por estar na beira de perder tudo que tinha e parar de fazer tudo que gostava e era capaz de fazer e só ouvia acusações e palavras de ingratidão e condenação,  que motivo de gratidão sobrou para ele?  No momento de ansiedade, por que ele ainda era capaz de dar graças, de bendizer?  

*A pergunta principal é:  de onde vem a gratidão?  Isto é:  o que me faz uma pessoa grata?*

*A gratidão vem da convicção de que somos profundamente amados por Deus.  Não tem ninguém e nada  capaz de tirar este amor de Deus.  Este amor ou a nossa profunda convicção deste amor sustenta no momento da perda, incapacidade e rejeição.  Em outras palavras, podemos perder tudo, cessar em fazer tudo que estamos fazendo até agora e parar de ouvir afirmações sobre nós mesmos mas o amor divino permanece.   Mais cedo ou mais tarde, perdemos pessoas (ou coisas) que amamos e nos amam;  paramos por um motivo ou outro, e.g.  enfermidade ou velhice, e não conseguimos mais fazer aquilo que nos faz sentir pessoas realizadas;  e ficamos fora dos cenários da vida e as palavras boas a nosso respeito se tornam escassas ou nulas.   As circunstâncias da vida mudam mas a nossa gratidão não depende delas.  A verdadeira gratidão não está vinculada no que temos, fazemos e absorvemos dos outros mas no amor incondicional de Deus.  Gratidão é um estado de vida que não deve depender  da fugacidade das coisas da vida.  Senão, oscilamos na gratidão e ingratidão. * 

Me lembro de um ditado (não sei de quem).  Diz que no momento da dor existem três possíveis níveis de reação conforme o nível espiritual da pessoa.  No primeiro nível, a pessoa reclama.  Segundo, a pessoa fica em silêncio.  Terceiro, a pessoa louva a Deus.

No momento de tribulação, Jesus deu graças a Deus com a clareza da voz do Pai que disse:  “Eis o meu Filho Amado em quem pus o meu agrado”(Mt. 3,17).  Ele assumiu sua identidade que não dependia das suas possessões, capacidades e prestígio.  Sua identidade é ser o Filho amado por Deus seu Pai.  O resto muda mas a condição de ser amado nunca muda.  O amor de Deus sustenta uma alma aflita.  Por este amor incondicional de Deus que Jesus deu graças até nas piores desgraças de sua vida.

* Não é por acaso que pessoas amadas (e se sentem realmente amadas) são gratas.  E pessoas gratas são naturalmente amadas, amáveis e amorosas.  A convicção de ser amado e ser grato se manifesta espontaneamente.*


Para Reflexão:
·        
     Agradecemos a Deus em tudo, não por tudo.
·         Quantas perdas e quantos ganhos pelos quais devo agradecer?



III.  PARTIR:  Jesus partiu o pão

Partir é pôr-se a caminho, sair, ir alem.   Quem parte se coloca a disposição para seguir ou criar caminhos;  é deixar algo para atrás em prol daquilo que está além.  Quem parte se torna diferente do que aquele que se acomoda.  Partir é uma ousadia ou algo tão inerente num ser humano em evolução;  às vezes, é uma loucura do ponto de vista de quem está na zona de conforto.  Partir é nada mais que um desperdício para quem não muda e não cresce.

Partir também é quebrar, dividir-se, romper, separar.  Há coisas que se partem e se consertam, se tornam pedaços quebrados a serem recolhidos ou jogados.  Coisas quebradas são coisas quebradas.  Porém, pessoas quebradas é outra coisa.  Qualquer quebra, divisão, rompimento ou separação traz imensa dor.  No entanto, partir apresenta ruptura ou destruição mas também sinaliza renovação.  Às vezes, partir é nada mais que uma etapa na evolução do ser humano ou um componente no ciclo da vida - - começo-meio-fim, e depois de partir, um recomeço e assim por diante.

Enfim, partir é repartir.  Partir é partilhar.  A fim de partir e repartir o que a pessoa tem, é preciso partir para outro lado e correr o risco de ser partido.  Assim que se vive a dinâmica da partilha.

Jesus tomou decisão de colocar o Reino de Deus em sua vida acima de tudo. Ele é a presença de Deus a quem ele dá graças incessantemente por seu amor.  Impulsionado pelo amor de Deus, ele partiu da sua aldeia de Nazaré, se pus a caminho rumo a Jerusalém e às cidades vizinhas e foi além das fronteiras impostas pela religião dominante.   Jesus partia a fim de mostrar e demonstrar os valores do Reino mas suas palavras e ações acabaram desafiando e insultando os poderosos.  Ele não tinha receio de anunciar verdades e denunciar mentiras porque ele era uma pessoa livre e vivificada pelos valores do Reino.  Ele se tornou uma ameaça a um sistema disfuncional.  Ele foi um homem quebrado pelas ameaças, rejeições e castigos.  Quantas vezes ele chorou com coração rompido por seu amado povo sofrendo nas mãos das autoridades religiosas e políticas.  Para estas, Jesus devia morrer mesmo porque ele se tornou um sinal de divisão no meio do povo.  Ele foi além demais porque questionava e violava algumas leis e tradições religiosas intocáveis. Ele era visto como um subversivo ousado a ser lançado na cruz como e com os outros violadores atrevidos.   Então, os detentores do poder partiram pra cima dele perseguindo-o e levando-o a sua condenação e morte.  Ele foi brutalmente partido em nome do Reino de Deus e do povo que ele tanto amou.

* Pela graça de Deus, recebemos tantos dons a fim de colaborar na construção do Reino de Deus.  E o dom mais importante dado por Deus é o amor.  Em outras palavras, a dádiva pela qual devemos agradecer a Deus infinitamente é a possibilidade de amar e ser amado.  Jesus foi imensamente amado, por isso ele foi capaz de amar tanto.  Ele amou a Deus com todo o seu ser e amou o povo de Deus com toda a sua vida.  Ele era um sinal de amor no alvejado Reino de Deus instaurado na terra.  Ele deixava tudo e fazia tudo por amor.  O seu amor livre e irreverente incomodava àquelas pessoas cujo amor ou jeito de amar era medido, definido, regulado e controlado pelas leis e tradições religiosas.  Eram leis e tradições para tantas coisas que acabaram ofuscando o que era o essencial no âmbito de amor, isto é, amar a Deus e amar ao próximo.  Quem demonstrava amor fora dos parâmetros daquelas leis e tradições era considerado pecador.  Por isso, Jesus sofreu e morreu – por amor.

Quem poderá controlar a força do amor?  O amor é um dom de Deus.  É ou não é?  Ele é além de qualquer lei e tradição.  E nada o prenderá pois ele é livre, poderoso, vivificante, renovador e criativo.  Ele não pode ser podado, preso, regulamentado, parado e morto.  Ou ama ou não ama.  Ou abandona-se ao amor ou abandona o amor.  Quem não ama, não vive.  Aliás, quem vive não amando, vive não amado.  Que adianta perfeição das leis e tradições só para viver mal amado?

Quanta loucura a gente faz por amor?  O amor parte e faz partir.  Impulsionado por ele, o amado ou a amada põe se a caminho e se torna capaz de ir além das leis e tradições.  Não se deve esconder o amor porque ele é um dom e sinal de Deus.   Ou ser uma testemunha de amor ou uma testemunha das leis e tradições.   O amor é uma verdade a ser contada e recontada.  A verdade nos libertará.  Também, a liberdade nos torna pessoas verdadeiras.  Sempre foi e sempre será assim.  A verdade sempre nos liberta mesmo que ela nos deixe miseráveis no início.  Mas quem esconde sua verdade e mata sua liberdade será miserável do início até o fim.  Portanto, o amor é sempre a maior expressão de vida, verdade e liberdade.  Aí de quem foge do amor por medo de ser partido!  Nunca conhecerá a alegria de estar além...

Seguindo os passos de Jesus, o partir do pão nos leva ao essencial do amor:  amar a Deus e amar ao próximo.  Parece um simples resumo dos mandamentos mas não é.  Amar a Deus, todos dizem.  Amar ao próximo é uma graça que rompe barreiras.  Pelo Espírito, nós somos enviados a amar a Deus com todo o coração, espírito e força.  E nós somos inspirados a amar ao próximo de forma mais verdadeira e libertadora.  E quem é o próximo?  É a pessoa bem próxima de nós.  Mas as leis e tradições matam o amor porque não deixam o próximo estar bem próximo.  Portanto, quem ama de forma concreta optando em ter uma pessoa amada bem próxima parte e se parte.  Ou amamos a Deus ou amamos aqueles que se fazem Deus?  Ou amamos o próximo ou amamos o distante?

Para Reflexão:

·         Missão (por Dom Helder Câmara)

Missão é partir,
Caminhar,
Deixar tudo,
Sair de si,
Romper com egoísmo
que nos fecha em nosso eu.

É deixar de dar voltas
Ao redor de nós mesmos
Como se fossemos o centro
Do mundo e da vida.

É não deixar se bloquear
Pelos problemas do pequeno mundo
A que pertencemos,
A humanidade é maior.

Missão é sempre partir,
Porém, não devorar quilômetros.

É sobretudo abrir-se às outras pessoas como irmãos
Descobrindo-os e encontrando-os.
E, se para encontrá-los e amá-los
É necessário atravessar os mares
E voar mais no mais alto do céu,
Então, missão é partir até os confins do mundo.


IV. DAR:  Jesus deu o pão aos seus discípulos/as.

A palavra `dar´ corresponde aos verbos `doar´, `entregar´ e `distribuir.´ É sinônima do verbo `partir´ ou `partilhar´.  É o gesto concreto de amar. 
Pessoas que vivem partidas se tornam mais sensíveis ao sofrimento.  Essa experiência dá vantagem para serem pessoas compassivas.  Elas aprendem a partilhar a partir da sua própria dor. É uma partilha das fracções do pão.
Jesus viveu partido e viveu repartindo.  Ele deu preferência àquelas pessoas cujas identidades foram marcadas por preconceito, rejeição e abandono;  pessoas consideradas impuras, pecadoras e de classe baixa.  Por isso, Jesus se encontrava no meio das pessoas excluídas pela religião e sociedade – pobres, doentes, mulheres, crianças etc.  Os evangelhos estão repletos das histórias de sua compaixão para com elas.  Por exemplo, quando Jesus contemplava as multidões exauridas e abatidas como ovelhas sem pastor, sentia-se com elas no centro do seu próprio ser (Mt 9,36).  Quando via os cegos, os paralíticos e os surdos serem trazidos até ele de todas as partes, seu coração se partiu (Mt 14,14).  Com os dois cegos que o seguiam (Mt Mt 9,27), com o leproso que se prostrou de joelho diante dele (Mc 1,41), com a viúva de Naim que estava sepultando o filho único (Lc 7,13), Jesus sentia tamanha compaixão.

*Amar é partilhar, partilhar é servir.  Sempre com compaixão.*

Para Reflexão:

·         Como podemos ver o sofrimento em nosso mundo de hoje e nos comovermos, como se comoveu Jesus quando via aquela multidão de pessoas famintas?
·          
       Um poema:
“Disse que amava as flores mas as corta.
Disse que amava os pássaros mas os prende.
Disse que amava os rios mas os polui.
Quando disse que me amava, fiquei com medo.”


 

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ASCENÇÃO:  UMA IDA ALÉM


por Ramlit Navarro

A ascenção de Jesus é uma demonstração das possibilidades plenamente humanas e divinas.  O Filho de Deus é capaz de assumir a condição humana (encarnação) e elevá-la às alturas renovadas e vencedoras na presença de Deus (ascenção).  Graças ao Verbo Encarnado por ter mostrado fontes de esperança para quem caminha com os pés no chão nas estradas da vida!

Jesus subiu aos céus.  Assim, acreditamos, à luz dos relatos bíblicos baseados nas narrativas da ressurreição.  Subiu quem estava no fundo, subiu aquele que desceu ao abismo do sofrimento e da morte.  Se elevou o servo sofredor do túmulo da escuridão e estagnação.  Jesus está vivo, mais vivo que antes!

A ascenção de Jesus significa que ele foi além -- além do túmulo, além da morte, além dos limites impostos, além desta vida, além deste mundo, além dos conceitos e das definições.  É uma amostra de um salto para além.  Um ser humano abençoado por Deus é capaz de ir além.  Jesus é um de nós, além de nós.  E ele, em sua vida, morte e ressurreição nos ensina a ir além - além das tradições religiosas e culturais e alcançar um horizonte além.  Jesus aponta incansável e fielmente um horizonte além que é o Reino de Deus.  Além de nós mesmos, além das religiões, além das culturas e raças, além da economia e política, além de toda a criação, além de tudo que é passageiro existe algo absoluto e definitivo -- o Reino de Deus.  Qualquer igreja tem credibilidade somente quando ela é capaz de ir além de si mesma.  Uma comunidade se torna verdadeiramente cristã quando ela proclama, serve e testemunha ao Reino de Deus como Jesus fazia.  Ou seja, a igreja é igreja enquanto ela aponta o Reino de Deus.  A igreja se torna igreja só quando ela aprende e reconhece que é chamada para ir além de si.   Isto quer dizer que a missão das comunidades cristãs não é concentrar nos seus problemas internos e fortalecimento de suas próprias estruturas mas sim, olhar para fora no mundo que grita, desafia e pede socorro.  E desnecessário dizer, o Reino de Deus não é propriedade de nenhuma igreja, religião ou instituição.  O Reino de Deus é o Reino de Deus - um reino de justiça, paz e compaixão.

Nesta fase da minha vida, encontro minha inspiração nas pessoas que  têm demonstrado força de superação no meio das adversidades e limitações.  São pessoas capazes de ir além e vencer.   Diria que são pessoas que testemunha uma ascenção já nesta vida.  Uma delas é o meu amigo Raymundo.  Veja abaixo fotos de mim e Raymundo (segurando a bandeira da Suiça):

Ramlit e Raymundo




Raymundo Caetano Pinto é pai da Mychelle cujo parto, em 1986, teve complicações e ela acabou sofrendo um acidente.  O cordão umbilical enrolou no seu pescoço o que a impediu de respirar por alguns instantes, o suficiente para causar uma lesão cerebral por falta de oxigenação.  Era um "acidente" causado pelos erros  médicos.   Para piorar, os médicos disseram que ela não sobreviveria por muito tempo e que se sobrevivesse as seqüelas seriam graves.  Era uma maneira de dizer que ela iria morrer em breve ou ela não teria futuro.  Imagine se você fosse o pai ou a mãe da Mychelle vendo sua filha naquele estado e ouvindo toda aquela história! 

Mychelle conseguiu sair do hospital com vida, porém com seqüelas.  Não tinha sustentação da cabeça, "era toda molinha", não interagia com pessoas ou com brinquedos, não conseguia segurar os objetos, não andava e não falava, era totalmente dependente.  Mesmo assim, o Raymundo e sua esposa Luíza, não desistiram em procurar ajuda médica e estudar sobre o assunto.  A batalha foi árdua!  E bastante cara!  Até que em 1994, Raymundo foi dispensado do seu trabalho, e com medo de não conseguir manter os tratamentos devido ao alto custo, investiu em uma piscina terapêutica nos fundos de sua casa com o dinheiro recebido de sua rescisão.  Assim, Mychelle foi crescendo e obteve uma melhora inacreditável.  Os próprios médicos que disseram que ela não sobreviveria, ficavam espantados com a melhora.  Com isso, muitas famílias com filhos portadores de deficiência física e mental começaram a envia-los à casa do Raymundo para beneficiar da terapia no seu quintal.

Hoje, Mychelle com 24 anos é alegria da família e de muitos amigos.  E o Raymundo?  Ele é o diretor, sua esposa Luíza é a presidente e sua filha Kelly (irmã mais velha da Mychelle) a coordenadora do Instituto de Recuperação & Natação Água Cristalina em Jardim Herculano, São Paulo.  O instituto atende gratuitamente a mais de mil pacientes  provenientes das famílias carentes de todos os cantos de São Paulo.  Atualmente, mais de 3 mil crianças e adultos estão na fila à espera de conseguir uma vaga na terapia.  O instituto é um espaço pequeno cheio de amor e compaixão.  É uma fonte de cura e recuperação para muitos e milagres para alguns.

Com eles, sou testemunha de muitas histórias de recuperação. Vejo nestas histórias e pessoas abençoadas, fontes de alegria e esperança.  Vejo que a verdadeira alegria é fruto de uma profunda tristeza.  Já vi que a mais autêntica esperança somente pode nascer no meio de desespero.

Afinal, a ascenção demonstra que do túmulo pode surgir a vida; a descida à mansão dos mortos pode transformar em subida aos céus;  as cicatrizes da derrota podem tornar-se marcas da vitória.  E assim por diante.  Assim é a ida para o além.

Luíza, Raymundo e Mychelle







Sessões de Terapia


 

 

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